
Lei criada sob medida para obra em Iriri ignora nota técnica da própria Prefeitura
Uma emenda apresentada pela vereadora Terezinha Vizzoni Mezadri e aprovada por unanimidade na Câmara Municipal de Anchieta reduziu de 30 para 3 metros a faixa de Área de Preservação Permanente (APP) às margens do Córrego Iriri, em plena área urbana do balneário. A mudança, que virou a Lei Municipal nº 1.674/2024, abriu caminho para legalizar uma obra atualmente em andamento no local, justamente uma construção residencial pertencente à filha da própria vereadora, Katia Mezadri.
O detalhe que chama atenção é que a modificação da legislação desrespeita a nota técnica da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que embasou a criação da lei, mas recomendava recuo mínimo de 5 metros nos trechos do córrego ainda não canalizados. Na prática, a própria Prefeitura atropelou a recomendação de seu corpo técnico ao encaminhar à Câmara um projeto que reduziu ainda mais a margem de proteção ambiental, e ainda sancionou a nova lei sem considerar o alerta.
Vereadora propôs a mudança
A redução da faixa de APP foi oficializada através do Projeto de Lei nº 115/2023, de autoria do prefeito Fabrício Petri. No entanto, foi a emenda modificativa nº 67, assinada pela vereadora Terezinha Vizzoni Mezadri, que estabeleceu o limite mínimo de 3 metros. A proposta foi apresentada no dia 18 de dezembro de 2023 e aprovada já no dia seguinte, 19, em sessão ordinária da Câmara.
Na justificativa formal da emenda, a vereadora alegou a necessidade de “salvaguardar direitos de propriedade dos moradores do entorno”, afirmando que a área do córrego estaria em sua maior parte canalizada.
O problema é que a própria nota técnica elaborada pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente traz outra realidade: o documento reconhece o estado de urbanização consolidada da região, mas propõe uma faixa mínima de 5 metros em trechos ainda não manilhados, como forma de preservar a função ambiental mínima da APP.
Ou seja, a emenda que garantiu a liberação da obra da filha da vereadora foi aprovada com base em um argumento que diverge do parecer técnico da gestão municipal, parecer esse que, ironicamente, foi solicitado pela própria Prefeitura para embasar o projeto de lei.
Obra avança com base em recuo criticado
A obra em questão já está em estágio avançado. Uma placa no local indica licença para a construção de dois pavimentos, com área total de 344,09 m². O alvará, emitido pela Prefeitura no dia 21 de março de 2025, tem validade até março de 2026 e está devidamente registrado junto à Gerência Operacional de Fiscalização de Obras e Posturas.
O imóvel, pertencente à filha da vereadora, está sendo erguido a exatos 3 metros do córrego, medida agora permitida por força da nova legislação. Porém, ambientalistas e moradores apontam não apenas o conflito de interesse evidente, mas a fragilidade legal da alteração da APP.
Segundo a Lei Federal 12.651/2012 (Novo Código Florestal), o recuo mínimo para cursos d’água com menos de 10 metros de largura deve ser de 30 metros. A redução para 5 metros ou menos só é permitida em áreas urbanas consolidadas, desde que amparada por estudos técnicos e pareceres ambientais, o que, neste caso, foi ignorado ou contradito pela própria norma municipal.
I e silêncio (quase) oficial
A população de Iriri tem se mobilizado contra a construção, com abaixo-assinado, denúncias ao Ministério Público e tentativa de ajuizamento de ação popular, que foi recusada por advogados temerosos de retaliação. Há expectativa de que a Câmara abra uma Comissão Parlamentar de Inquérito (I) para apurar o caso.
O Espírito Santo Notícias entrou em contato com os seguintes órgãos para questionar os desdobramentos do caso:
- Prefeitura de Anchieta: respondeu, por meio de nota sucinta, que “o projeto de lei foi encaminhado ao legislativo de acordo com a nota técnica da Secretaria de Meio Ambiente. O Projeto de Lei nº 115/2023 previa afastamento de 5 metros, estando em conformidade com a nota técnica. Ocorre que a Câmara promoveu modificações no texto original, ficando, ao final, aprovado 3 metros de APP referente ao Córrego Iriri. A prefeitura respeitou a decisão do legislativo”.
- Câmara Municipal de Anchieta: quais foram os pareceres jurídicos que embasaram a aprovação da emenda modificativa que reduziu a APP para 3 metros?
- IEMA (Instituto Estadual de Meio Ambiente): informou que não foi consultado nem formalmente comunicado sobre a alteração da faixa de APP em Anchieta. O instituto afirmou que a apuração de eventuais irregularidades no processo legislativo é de responsabilidade do Ministério Público do Espírito Santo. Reforçou ainda que qualquer mudança nas faixas de APP em áreas urbanas consolidadas deve atender a critérios técnicos e legais previstos no Código Florestal e na Resolução Consema nº 003/2021, incluindo consulta ao conselho municipal de meio ambiente, fundamentação técnica, compatibilização com planos de drenagem e participação social no processo.
- CREA-ES: a construção em APP possui Anotação de Responsabilidade Técnica (ART)? Haverá vistoria diante da divergência técnica?
Até o fechamento desta matéria, Câmara e CREA-ES não haviam respondido.