
Cada um dá o que tem para dar
O texto que segue é uma crônica, qualquer semelhança com a realidade não é coincidência: o sorriso largo e o abraço infinito de vovó.
Talvez não seja nem a questão de serem vazios. Talvez não seja uma questão de afeto. Talvez nem saibam o que é de fato é o amor. Quem sabe não tenham, talvez sejam mesmo vazios. E, pela falta de não ter, não têm o que dar.
A gente não pode querer que alguém dê aquilo que não tem para dar. Ninguém tem culpa se não saber amar.
Talvez não tenham tido a dádiva de serem também amados, porque a gente costuma devolver o que recebe, de bom grado.
Se eu não tivesse recebido tanto amor de minha avó Ana, talvez não amasse tanto a avó que não é minha. Será de outra vida este amor que tenho tanto por ti, vovó?
Minha avó não tinha nada, a não ser uma casa de chão batido e pau a pique, embarreada, num canto, numa pequena chácara, sem água encanada, com cacimba, talha, lamparina e banhos de bacia, no meio do nada, entre os grandes fazendeiros Costalongas e Moreira.
Naquele canto, só as plantas: o pé de urucum, a cana caiana, a manga, a jaca, a amora, a banana. Ah, o pilão onde a gente fazia paçoca de amendoim! O pequeno engenho onde a cana era moída e a garapa, que delícia! Ainda sinto o gosto do café de cana na boca. O brejo magro, a peneira para pescar e os banhos nas corredeiras da ponte lá do Agostinho.
Como me lembro dos presentes que vovó me dava: uma rolinha no ninho que eu tinha de vigiar e uma galinha do pescoço pelado que eu jamais poderia matar.
Eu rememoro esse tempo naquele canto, lá pelas bandas de Comissão, onde eu nasci e Leonel, onde vivi toda a minha infância, brincando com Jaciguai, Mirela, Marquinho (todos já se foram), menos Edinho e Xuxula, meu irmão. Hoje me vejo aqui, entre os muros e grades, enquanto vovó ressona no canto da cama. Ouço os pássaros e o dia está clareando.
Cada um vai dar só o que tem para dar, e quem não tem, não adianta pedir, nem tentar. Deixe-os. Quando ela se for, certamente vão se achegar. Alguns vão chorar, se lamentar; outros, quem sabe, vão imaginar algo para levar de lembrança. Talvez queiram levar a galinha pintadinha de cerâmica, o galo de louça na estante, a chaleira, o bule no paiol, os facões, a geladeira, a televisão, as botijas e as as de pressão. Vão deixar a casa vazia e dar um jeito logo de vender para repartir entre os herdeiros.
Parece que já escuto essa conversa de pé de ouvido, no canto da cozinha, onde deverão velar o corpo cansado da vovó.
Esperar o quê, minha gente? Onde cada um só vale o que é, se tiver; senão, não vale nem um tostão, muito menos uma noite de sono ou um fim de semana. Um Natal ou uma virada de ano?
Eu amo escutar os pássaros no quintal dela e, por falar nisso, vou molhar as plantas e fazer um pão para, quando ela acordar, a gente tomar um café juntas na cozinha.
Quando ela se for, se for antes de mim, eu terei a lembrança mais pura e genuína do sorriso largo, dos abraços de quando eu chegava e ela perguntava: “É a Preta?” E quem parecia não saber amar. Acho que a conquistei bem devagar, a cada brevidade, cavaco e tapioca que levava, a cada calunga que eu arrumava para um almoço no meio da semana.
Deixe o amor nascer em você e terá para dar e receber. Ninguém dá o que não tem para dar!