
Amor além da medida
Este texto é a terceira crônica de minha autoria (Luciana Maximo) depois de ar um pouco mais de 24 horas na Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro de Itapemirim. A crônica foi inspirada no casal Carlos Jordânia Neto e Maria da Penha de Jerônimo Monteiro.
Aqui, como acompanhante da nossa Ana, na Seção L da Santa Casa de Misericórdia, conheci o casal Carlinhos e Dona Maria.
Aliás, conhecer pessoas e suas histórias é algo que sempre me fascinou muito, e aqui estou, ouvindo retalhos da vida real de pacientes que a gente acaba se apegando.
Cada um tem sua narrativa única, como ageiros que embarcam em um vagão a cada estação. A de Dona Maria, no entanto, merece ser contada, compartilhada.
Que mulher brava e tinhosa! E é ela quem manda, quem dá as cartas em casa e no hospital, seu Carlinhos corta um dobrado e tira de letra, estão juntos há mais de 25 anos.
Entre devaneios, divagações e momentos de sobriedade, Dona Maria tem sempre ao seu lado o pedreiro Carlinhos. Vieram da “Terra da Laranja”.
Por lá, Dona Maria fez muito sabão, doces de goiaba e de leite. Também torrou muito café. Sempre foi mulher de lida, trabalhadeira. Se ganhou dinheiro com os doces, não sei, pois, com seu coração tão bondoso, vendia e a quem quisesse comer, e se não pagassem, não se importava e nunca cobraria.
Todo o tempo, no quarto e na porta do centro cirúrgico, o marido permanecia atento, preocupado e esperançoso. A cirurgia, que Dona Maria aguardava desde a última segunda-feira, ainda não aconteceu. Coitada, chorava de dor tantas vezes.
Seu Carlinhos tem 54 anos, dona Maria, 69. Ele, apaixonado por ela, tem uma paciência de fazer inveja.
O cuidado e os mimos que ele dedicava a ela me fizeram pensar que, de fato, existem homens e homens!
Que cena bonita: ele a alimentava com café, com leite e pão, e a todo instante oferecia água. Um cuidado que eu nunca vi igual. Não arreda o pé do lado do leito. Se ela tira a blusa, ele a cobre. Se rasgava a fralda, ele ajeita e troca.
– Não faz isso, Maria, vão te ver assim – pedi ele, com carinho.
Ela chora, e ele a acalma. Fala baixinho. Zela por ela com tanta ternura que me deixava irada. Um amor além da medida.
Ele contou que ela vem enfrentando um longo ciclo de problemas de saúde. Quando ele acreditava que finalmente viveriam o melhor da vida, ela caiu ao estender roupas no varal. O tombo resultou em uma luxação no braço, próxima ao ombro, e agora precisava de uma cirurgia no quadril.
Que via-crúcis para Seu Carlinhos! Há mais de uma semana, corre de um lado para o outro.
Na sexta-feira, Dona Maria chegou a ser levada ao centro cirúrgico. Tudo pronto: jejum, maca preparada, equipe pronta, anestesista, ortopedista, técnico…
Seu Carlinhos suspirava aliviado, segurando sacolas de roupas, esperando vê-la sair da sala operada.
Tudo o que ele queria era vê-la bem, sem dor.
Na porta do Centro Cirúrgico, entre pausas carregadas de afeto, ele narrava a trajetória de desafios e sofrimento da sua amada.
Mas então veio o balde de água fria: já de volta ao quarto, onde estavam Ana, Elisângela e Sônia, a carioca sempre saudosa de uma cerveja, a revelação.
A cirurgia foi adiada. Falta um parafuso. A cirurgia ficaria para a próxima semana.
Como explicar isso a Dona Maria, que só queria ir embora dali? Ela não queria saber de conversa. Está aperriada. Nem sabe que ainda não operou, fazer esta revelação agora, só poderia deixar mais aflita.
Tentei puxar assunto, buscando parecer íntima depois de saber que ela fazia sabão em barra e guardava mais de 60 pedaços em casa.
– Dona Maria, vou até sua casa buscar uma barra de sabão e um doce de goiaba!
Sem paciência, ela respondeu:
– Vou te ensinar o caminho errado e você nunca chega lá, tem muitas estradas que você não conhece.
Mas logo depois, menos arredia, perguntou:
– Os médicos vão cortar meu umbigo na cirurgia?
– Ué, Dona Maria! A cirurgia é na perna, perto do quadril. Não tem porque mexer no umbigo da senhora!
Enquanto eu tentava me aproximar, Seu Carlinhos, paciente, cobria devagar os seios dela e, com jeito, pedia:
– Não rasgue a fralda, Maria…
Às 2h da manhã, os gritos começaram.
– Me ajuda! Me ajuda! Me tira daqui! Desamarra isso.
Levantei devagar da poltrona do papai, me aproximei e Seu Carlinhos todo sem jeito. O quarto inteiro dormia.
Com cuidado, perguntei:
– A senhora sabe rezar?
Ela começou a murmurar preces. A pedi que rezasse sete Ave-Marias e um Pai-Nosso.
Dona Maria rezou, rezou, rezou… e dormiu. Rezamos juntas. O quarto inteiro adormeceu também. Seu Carlinhos, enfim, conseguiu cochilar um pouco ao lado dela.
E ali ficou registrada uma cena inesquecível: um amor além da medida.
Seu Carlinhos, sempre sereno, cobria sua amada de carinho. Não reclamava de nada – nem do calor, nem do cansaço.
A noite toda sentado ao lado dela, a cada devaneio, ele se levantava, segurava sua mão e murmurava ao ouvido:
– Estou aqui, Maria. Para com isso, estou cuidando de você. Você vai melhorar e voltar pra casa. Calma Maria.
Eu vi, em 24 horas, um fiel cavalheiro, eu registro – um amor além da medida!